Já era costumeira a reclamação logo pela manhã. Úrsula, nome esse escolhido pela sua mãe, vivia entre conflitos internos e revolta constante. Talvez, devido às marcas deixadas em sua infância, ou simplesmente atrito com a vida, a menina acabou se tornando uma jovem amarga. Nascida na cidade de Salvador permaneceu toda sua vida no estado da Bahia. Não gostava de toda agitação que a cidade lhe oferecia. Sempre calada, cabisbaixo e com um temperamento forte, cresceu diante a tormenta da perda de seu pai. Seu pai, Sargento Euclides, zelava da sua filha como uma ave cuida do seu filhote. Era de temperamento forte, enérgico, carinhoso, mas também colérico quando se tratava da segurança da sua família. Era um guardião para sua filha. A morte do seu pai foi prematura, a menina havia feito seus dezesseis anos e o abalo na sua família foi tão destrutivo quanto um terremoto. Sua mãe, Dona Rosa, era de criação antiga, tradicional. Nunca foi lhe foi permitido à chance de trabalhar ou estudar. Vivia pelo seu marido, a morte do Sargento, levou o restante da vida que existia no peito dela. Aqui está um ponto importante, Úrsula, diferente da sua mãe. Sabia seu lugar no mundo, não deixava as pessoas falarem o que era certou ou não para ela. E isso a afastou das pessoas da sua idade, garotas que queriam se casar e cuidar dos seus futuros filhos, e também mantinha distancia dos garotos galanteadores que se aproximavam dela com outras intenções. Queria ser uma profissional, a área de certo não sabia ainda, porém almejava um alto grau na sociedade. Queria ser imponente como seu pai um dia foi. Sonhos esses que se distanciaram da jovem, após a perda do seu herói.
Não demorou muito para sua mãe cair enferma na cama, a menina com vários sonhos, dedicou-se a cuidar da sua genitora. A semente da desilusão começava a germinar em seu peito. Os sonhos são os pés da vida, eles estruturam o solo que caminharemos até o fim, a queda dos nossos sonhos derruba para o fundo o reconhecimento da nossa própria existência. E, Úrsula, já não se reconhecia mais. Era sombra dos seus próprios passos. Vagava pela casa quieta como sempre foi, mas agora existia nela um silencio sofrido, um silencio que escutamos com a alma. Sua mãe, já não falava mais, não estava morta apenas por restar vida em seu olhar. Pouco se movia na cama, mas acompanhava sua filha com os olhos, sempre teve olhos espertos e com um brilho amável. Os olhos são sempre os últimos a morrerem. Sua filha perdia a confiança, a luz que nela residia, estava quase morta como sua mãe. Era uma morte espiritual. O silencio de luto, tomava conta da casa e só era quebrado quando, Úrsula, decidia se queixar da vida. Mantinha o respeito pela situação da sua mãe, por isso falava pelos corredores, salas e jardins. Essa atitude ganhou uma frequência colossal, aos poucos o silencio virou uma reclamação orquestrada. A jovem não falava sozinha, o ambiente parecia lhe responder, o vento zumbia baixo como se concordando com a moça, o chão de madeira estalava um estalo agudo, parecia gritar. A casa agora tinha formato de tristeza. O ambiente provava que pode ser influenciado pelo ser vivo. E o ambiente chorava naqueles dias.
Úrsula, pouco sabia sobre sua família. O pouco que escutou foi por meio do seu pai. Ele sempre se orgulhava da casa deixada pelos seus pais. Era uma casa antiga, com uma elegância única. Era grande feita para caber mais de três famílias. Decorada com diversos armários e escrivaninhas, a mesa de jantar tomava quase um cômodo inteiro, havia ali, com certeza, um charme de outra época. Todos na vizinhança paravam para olhar, tentando enxergar como era dentro. Era uma família bem reservada, não existia muita amizade com os moradores do bairro, mas o respeito e educação sempre estiveram presentes. Sua avó, Senhora Fátima, detinha modos tracionais, com uma severidade além do necessário. Acredito que o seu jeito, foi o responsável pelas poucas informações que existiam sobre ela. Há dores que preferimos esquecer.
A depressão da garota foi tomando uma proporção maior, a solidão foi se expandindo para o externo e refletia nas janelas e cortinas fechadas da casa, que aos poucos, era tomada por poeira. O acidente sofrido pelo pai era responsável pelo surgimento da dor, mas aquela dor já nascera com ela. E desabrochava, como um pintor que se esforçava para melhorar suas técnicas, ela aprimorava suas dores internas. Sim, é possível treinar coisas ruins, há coisas que chagam a ser até mesmo domesticadas por nós. E a jovem tinha um sofrimento de estimação, zelava e o alimentava diariamente. Em poucos dias, o silêncio virou reclamação e a reclamação virou gritos. Gritos da garota que não se aguentava mais dentro de si mesma. Gritos sem objetivos, tão involuntários quanto o ato de respirar. E foi nesse período de perda da sanidade que aconteceu o pior.
Era um fim de tarde, não posso dizer com exatidão quantos copos de vinho ela havia tomado, creio que uma quantidade alta. Estava trombando inconscientemente pelos moveis. Não chegou a cair, seu equilíbrio, físico, diferente do emocional, ainda estava controlado. Ao andar pelo corredor, iluminado por luzes amareladas, decidiu entrar no quarto do seu pai. Entrou, pisava descalça no tapete vermelho que trazia certa melancolia para aquele espaço. Fitou os papeis ainda sob a mesa próxima a cama. Parecia estar tudo aguardando o retorno do Sargento, que, nunca mais iria voltar. Caindo quase em desgraça chorou, ajoelhou e entendia, apesar da embriaguez, as duas perdas que se concretizavam ali. A do seu pai e a da sua fé em si mesma. Nesse momento, uma luz surgia pela fresta da janela, não sabia de certo da onde vinha, mas era forte. Ia direto ao encontro de um espelho antigo, com formato oval, que pouco ela reparou durantes os anos. Levantou-se, chegou perto e viu pelo reflexo sua face. Encarou a imagem, como um toureiro encara o touro antes do espetáculo. Após um minuto reclamou para o seu reflexo, como sempre fez pela casa;
– Pobre mulher, sem pai, com a mãe quase morrendo. O que esperar de mim? Sou resto de escultura não moldada. A forma inacabada de um rascunho sem tema. Sofro hoje como sempre sofri. E você? Não é forte, Úrsula, não conseguiu vencer a disputa contra a vida, não merece viver.
E com um súbito olhar, percebeu a imagem no espelho se mexendo. Sim, algo acontecia e a resposta veio na sequencia.
– Não sou fraca, nunca fui. Nasci forte, pronta para diversas quedas. A morte do nosso pai a derrubou, queda de quem já esperava cair antes da desgraça. Caiu por querer cair, a facilidade em substituir a culpa do fracasso. Vi nossa mãe acamada, teve ela culpa? Talvez, mas idade é implacável. Somos novas, sempre fomos com toda essa força jovial para mudança. E você, o que fez? Derrubou todas as gotas da esperança em uma taça e na escuridão fez seu berço. Não me culpe, pelo molde escolhido por você.
Úrsula parou de chorar, travou com um medo raivoso. Medo de um animal sem opção de fuga, que não tem escolha senão o ataque. E atacou. Não tinha resposta, era um dialogo sem resposta. As reclamações sempre foram questionamentos sobre sua culpa. Que culpa? Não se via como culpada, afinal, quanta desgraça umas jovem aguentaria? E atacou como quem ataca a si mesma com uma adaga. Jogou a taça no espelho, via seu reflexo partir em pedaços, eram seus pedaços caindo ao chão, era sua morte acontecendo na sua frente. Teve a oportunidade de um anjo, vendo o destino do seu protegido acabar. Não chorava mais. Não gritava mais. Matou a si mesma. Sua maior parte estava no chão e ela deitou por cima. Dormiu em cima dos seus próprios cacos. Era naquele momento o ultimo sono da sua pior parte.
Aqui há talento! Obrigado.
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