A vida é agora

Saí  de casa às 11 horas. Antes, apanhei as chaves do carro, guardei a xícara de café e caminhei em direção à minha esposa para me despedir. O tchau seguiu como de costume, um abraço longo, um beijo leve e palavras automáticas que saem da boca sem percebermos. Ao sair, senti o calor, não era verão ainda, mas o sol queimava o solo. No céu azul, os pássaros voavam contornando as casas. Decidi por abrir os botões da camisa, entrei no carro, coloquei no banco de trás mais um papel jogado pelo meu filho, e segui o trajeto que o GPS indicava. Conforme o carro ganhava velocidade, as silhuetas na janela transformavam-se em borrões sem formas específicas. Lembro-me, perfeitamente, de sentir, naquele instante, a ausência de vida. A recordação não é clara, pois a sabedoria necessária para definir tal sentimento, chegou da mesma forma que a consciência do importante, num sopro tardio. Nesse vazio no estômago, ou no coração, não sei de certo, pois, às vezes, essa confusão se dá na esfera física, fui despertado pela voz robótica que me indicava o caminho a seguir: – Vire à direita em 100 metros. Virei. Mais à frente parei o carro, na rua, um idoso atravessava lentamente, atrasando-me ainda mais para a reunião agendada no dia anterior. A viagem seguiu normalmente: O GPS narrando o caminho, a rádio sintonizada na estação de notícias e as pequenas vibrações do celular guardado ao lado do câmbio. A cada 1 minuto, virava-me, levantava o aparelho telefônico e digitava 3 ou 5 palavras para os sócios que me aguardavam. Acredito ter sido no intervalo entre a notícia e o levantar do celular, que àquele ônibus entrou na frente do meu carro. Poderia parar por aqui. Na verdade, seria o certo, encerrar o espetáculo ao apagar das luzes. Mas aí está o problema, quando as luzes não se apagam. Nesse instante, ou o show continua, seja em um gesto de agradecimento, ou em improvisações constrangedoras, ou os atores abandonam o palco sob vaias e julgamentos. No meu caso, a vida se estendeu por exatos 5 minutos. Era o momento de encerrar a cena. Eu sentia a chance de preencher a vida. É a incoerência da existência, encher-se de vida durante a morte. Para ser claro, entre o ônibus e a falta de ar, vi a minha vida passar diante de mim. Não, não pense em filmes, eu não vi toda a vida passar diante dos meus olhos. Eu presenciei unicamente o dia em que eu morri. Engraçado, acreditava fielmente que recordaria dos momentos mais felizes da minha vida. O nascimento do meu único filho, o sorriso do meu pai ao me ver fazendo o primeiro gol do time da escola, o sorriso da minha mãe ao ganhar um vestido fruto do primeiro emprego. Nada. Nem perto disso, revi apenas cada passo que dei desde o momento em que acordei naquela manhã. Pode parecer terrível terminar a vida assim, sem lembranças preciosas, momentos marcantes, ou algo do tipo. Esse engano, que possivelmente você está cometendo agora, foi o meu momentaneamente. Até perceber o coração cheio, o estômago cheio, a vida pulsando, relembrando a manhã, pude sentir a vida transbordar. Foi assim que percebi a essência de ser completo, assistindo ao passar de um único dia, um dia comum. Ali eu relembrava do cabelo da minha esposa naquela manhã, ela havia pintado, como ele era lindo. Posso estar enganado, mas ele estava mais bonito do que nunca. Na despedida, senti o abraço dela, o jeito que ela dizia: – Eu te amo. Incrível, a voz dela estava mais vibrante que outrora. Ao presenciar o momento em que sai de casa, olhei os pássaros, havia ninhos preenchendo a árvores da rua. Naquela manhã, os pássaros cantavam ainda mais, a melodia era única, cantavam, com certeza, para mim. Ao entrar no carro, percebi que o meu filho havia esquecido o presente dos dias dos pais em cima do banco, nele estava escrito: PAPAI EU TE AMO. Como não observei isso? Continuei, como espectador, a observar o trajeto. Olhei para o lado, na janela, um idoso sorria para mim, apesar da pressa, sempre respeitei as faixas de pedestres. Aquele sorriso me preenchia, eu sentia a alegria da idade que eu nunca chegaria a ter um dia. Detalhes e detalhes passaram diante dos meus olhos. O coração se enchia de alegria, mas, os 5 minutos acabaram, as luzes se apagaram. E eu aprendi, aprendi apreciando a visão da minha rotina, que a vida é o agora. E o vazio é o não se admirar com cada momento do dia.

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